Tuesday, December 23, 2014

De como Flavitxo Gambero saiu-se no duelo de final de ano

Horário e local marcados, Carlitos Bicchiere seguiu para o encontro. Dados os últimos acontecimentos, era de esperar uma recepção calorosa. Talvez calorosa demais. Don Flavitxo Gambero estaria com os canhões carregados e apontados para a pequena subida que levava ao topo da colina onde ficava sua mansão. Por um momento, Carlitos vacilou. Olhou para o embrulho da garrafa, respirou fundo e prosseguiu mais resoluto. Não perderia a batalha antes de travar o bom combate.

A recepção

   Don Akira, o Impiedoso, recebeu Carlitos à porta. Disse que Flavitxo estava na cozinha, com os últimos retoques nas iguarias. Anticlimático... Indo à cozinha, Flavitxo estava com o sorriso aberto, como se fosse saborear uma presa fácil. Terminava o tempero em seu já famoso e inigualável carré de cordeiro. A churrasqueira estava acesa. Flavitxo olhou para a garrafa de Carlitos, devidamente embrulhada em papel alumínio.
   - Então vamos começar o combate - proclamou.
   - Trouxe esta venda, para que você não possa saber qual a idade do vinho - anunciou Carlitos.
   - Não por isso. É para já! - Flavitxo sentou em uma cadeira e deixou-se vendar. Carlitos tirou a rolha, colocou dois dedos na taça e serviu-a, colocando a base da taça nas mãos de Flavitxo, que levou-a ao nariz e arrepiou-se nos cabelos. Cheirou. Cheirou novamente e proclamou: - Borgonha branco. - daí cafungou, mesmo, e mandou: - Borgonha branco de alto quilate.
   "Canalha" - pensou Carlitos. Malditos importadores dos infernos. Sempre dizem que, em uma degustação às cegas, mesmo especialistas não conseguem diferenciar um branco de um tinto. A única esperança de Carlitos era não entrar no campo de guerra para batalhar no terreno do general adversário. E para evitrar o lodaçal, escolhera justamente um branco, o que tornaria a comparação com um tinto mais difícil. Mas o começo não tinha sido exatamente bom...
   - RG da garrafa! - pediu Carlitos, antes que alguém pudesse desabonar sua escolha. Todos riram, Flavitxo retirou a venda e deu uma bebericada:
   - Muito jovem. Estaria bom dentro de mais uns 4 ou 5 anos. Mas está bastante bom dentro da minha taça, também. Parabéns, meu jovem.
   Don Akira serviu sua peça.
   - Fechado, bastante fechado. Terroso - disse Carlitos. Flavitxo concordou, destacando ainda o álcool aparente. E disparou:
   - Italiano. - Carlitos concordou.
   Mais algumas farejadas e Flavitxo levantou-se perturbado, indo para a cozinha, enquanto deixava escapar um "Canalhas". Voltou trazendo o carré e passou reto pelos convidados ao mesmo tempo que dizia quase como uma reza: - Plano B, plano B.
   Flavitxo depositou o carré no fogo, olhou para para a mesa, para as taças, para os comensais. Respirou fundo e entrou na adega. Saiu 5 segundos depois:
   - Não tem embrulho, vai na seca mesmo - e apresentou seu candidato. Carlitos olhou para Don Akira e ambos descascaram seus embrulhos enquanto Flavitxo ainda anunciava: - E de sobremesa, será este.

Os protagonistas

Estavam lá as garrafas, perfiladas.
Corton-Charlemagne Gran Cru 2010, 13,5% de álcool
Brunello di Montalcino Biondi-Santi 1998, 13,5% de álcool
Vega-Sicília "Unico" 1999: 14% de álcool
Taylor's 20 anos: alguém sabe? (rs)

   Carlitos Bicchiere trouxera um Corton-Charlemagne Gran Cru 2010, do viticultor Vincent Girardin. Don Akira apresentou seu Brunello di Montalcino Biondi-Santi 1998, e Flavitxo aportou um Vega-Sicília "Unico", 1999. A sobremesa seria regada a Taylor's Tawny 20 anos. Dando-se conta do que tinham em mãos, Akira, Flavitxo e Carlitos ajoelharam-se e, na posição de humildes coadjuvantes, reverenciaram as garrafas, encostando as palmas das mãos em sinal de oração. Depois encheram as taças e partiram para o abraço.

As impressões

   O Corton-Charlemagne apresentou-se com notas de mexerica e algo adocicado no nariz; excelente acidez, bom corpo. Grande persistência, final largo, muito largo. Com temperatura um pouco mais alta, apareceram notas de manteiga. Flavitxo levava as mãos à face e sorria: - Uvaia, tem uvaia... O que mais impressou a Carlitos foi, ao final da degustação, passadas quase cinco horas, o buquê a mexerica continuava nas taças. Isso não acontece com qualquer branco...
   O Biondi-Santi abriu fechado (sic! risos!), exigindo decantador. Início terroso, ainda assim com ótimos taninos. Ao longo das horas foi mostrando suas qualidades, aportando especiarias e depois chocolate. Final longo com algum amargor (muito leve) no retrogosto. Persistente, grudento até: não queria largar as bocas por onde entrava.
   O Vega abriu bem e só melhorou, ainda mais com auxílio de decantação. A Carlitos pareceu um tempranilho muito marcado. Complexo no nariz e na boca, permanência tão longa quanto o Biondi, final muito longo. Notas de alcaçuz foi uma percepção do Akira. Carlitos nunca havia experimentado nada da famosa bodega, e pouco teve a acrescentar aos comentários dos amigos, além da constatação de que o vinho faz juz à fama - e ao preço. Don Flavitxo ficou de fazer uma postagem a altura do viticultor, e certamente o fará. O inexistente leitor destas mal-traçadas linhas se deliciará muito mais com suas análises.

   No conjunto, os três vinhos combinaram muito bem com as carnes - além do carré, Flavitxo assou uma picanha muito suculenta. Mesmo o branco combinou, e bem. Akira comentou com um suspiro, um pouco triste:
   - O dia em que um Biondi-Santi foi o pior vinho da mesa...
   Ninguém estava preocupado com isso. O figo com chantilly (este último preparado pelo próprio Flavitxo) casou com o Porto à perfeição, sem margem para resmungos ou desabonos. Somente suspiros.
   Carlitos saiu satisfeito. Seu escolhido não foi atropelado pelo de Flavitxo. Um empate técnico agradou a todos. Para o início do ano, a providência urgente é zerar o contagiros, e voltar a vinhos mais modestos. Boas festas a todos.

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